segunda-feira, 17 de setembro de 2012

MEUS ESPINHOS SÃO AS LEMBRANÇAS




Eu estava me tornando adolescente. E além da típica dureza entre as pernas, eu tinha que conviver com a dureza de grana. Na semana anterior eu tinha sido convidado, pela primeira vez, para uma festa de quinze anos e não poderia ir porque não tinha dinheiro para comprar uma roupa adequada. Naquele dia, acordei aborrecido, passei o dia lançando farpas na escola e agora tinha chegado a hora da minha mãe receber a parte dela. Enquanto fazia o dever de casa, comecei a praguejar em voz alta, reclamar do que não podia ter, que tinha que estudar mais do que os outros (o que não era verdade), essas coisas. Esbravejava a esmo, e como ela não reagia, resolvi ser cruel. Comecei a dizer que preferia ser filho do meu tio Augusto, e ser como meus primos que tinham tanto e eram tão mais do que eu. Eu sabia que minha mãe escutava, enquanto acabava de lavar os pratos do jantar. Quando terminou de arrumar a cozinha, se aproximou e sentou num banco baixinho, ao lado da mesa na qual eu estava simulando fazer o dever de casa. Não sei se tive medo de apanhar, mas fui minguando até que parei. Mas ao invés de falar das dificuldades financeiras da família e de como ela não podia contar com meu pai para ajudá-la (na verdade essas coisas eram equivalentes), ela começou a falar do seu irmão mais velho e de como ele roubou meu avô nos negócios; da sua obsessão em ganhar dinheiro; dos casos que minha tia mantinha fora do casamento e como ela sempre dava um jeito do tio descobrir; de como meus primos eram infelizes nas suas camisas floridas de surfwear, das frustrações que não podiam administrar e tentavam inutilmente compensar consumindo. E o pior: de como todos, que aparentavam tanta felicidade, quando estavam à sós, em casa, nem se falavam. “-Li uma vez em algum lugar, deve ter sido numa revista, que se você vir um mar de rosas, não esqueça que logo abaixo da superfície há um oceano inteiro de espinhos .”
A única revista que ela lia era Seleções do Reader’s Digest. Histórias edificantes cheia de bons exemplos. Meu pai e meu irmão riam quando ela evocava algum pensamento extraído de lá, mas eu não. Já sentia culpa bastante só por desprezar tudo o que ela prezava, mesmo que em silêncio.
Se o objetivo dela era me consolar exibindo as fraquezas da família, o tiro saiu pela culatra. Se meus primos consumiam porque eram infelizes, eu também era! Mas não consumia. Minha camisa mais nova tinha seis meses. Além do mais, ela e papai não se entendiam tão bem assim para que isso me servisse de compensação. O que ela conseguiu foi destruir minha ilusão de família perfeita.
No dia seguinte, meu pai me chamou. Tinha escutado a conversa. “Quero fazer um ou dois comentários”. Ele ficava sério quando ia discordar de minha mãe, precisava se concentrar para contrabalançar sua falta de jeito com as palavras. “-Sua mãe vê as coisas só pelo lado que convém a ela. Pelo que eu sei, o único amante que sua tia teve foi um amigo do seu tio e ela pediu a separação para viver com ele. O Augusto é que implorou para que ela ficasse, principalmente porque seus primos eram pequenos. Sua tia acabou cedendo. E ele também já aprontou as dele, com a secretária e até com clientes. Seus primos são infelizes ou felizes como qualquer um, nem mais nem menos. Ninguém é o tempo todo nenhuma das duas coisas. De tudo o que sua mãe disse, o único fato verdadeiro foi o seu tio ter passado a perna no seu avô. Aproveitou que o velho estava adoentado e praticamente o expulsou dos negócios.”
Em seguida quase estragou tudo: “O seu avô, antes de ficar doente me chamou para contar que estava pensando passar a firma para mim”. Isso era o mais completo absurdo. Mais de uma vez escutei vovô falar da incapacidade de meu pai em administrar qualquer negócio.
Mesmo assim, dei-lhe um abraço. Por ter resgatado meu direito à inveja!
Meus espinhos são as lembranças (talvez os de todo mundo).

2 comentários:

  1. Também é ficção?

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  2. Como disse o Philip Roth certa vez a um jornalista que perguntou o que, em seus livros era autobiográfico: "A pergunta certa é "O QUE NÃO É?"

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